A primeira vez que ouvi falar desse projeto foi em uma
aula de projeto, na Faculdade de Arquitetura de Lisboa (FAUTL). O meu então
professor tinha o hábito de narrar algumas de suas visitas a grandes obras da
arquitetura. Aproveitava-se de sua experiência física nos locais para exemplificar
os conceitos de projeto que queria nos passar. Essas suas histórias prendiam a
atenção de toda a turma, pois mostravam de forma apaixonada como a arquitetura
transcende os desenhos - Falar de arquitetura é falar de espaços. Dentre as
suas contundentes descrições, a que mais me marcou foi aquela sobre a sua ida
ao cemitério projetado pelo arquiteto Gunnar Asplund, em Estocolmo.
Já se passaram muitos anos desde então e não me lembro de
todos os detalhes sobre a sua visita. Guardei apenas algumas de suas percepções,
dentre elas a sua descrição sobre os elementos que pontuam a paisagem e os
materiais que demarcam a transição entre os ambientes. São percepções que me
acompanharam durante a minha visita no ano passado.
Parece estranha a ideia de ir visitar um cemitério. O próprio
programa já suscita uma série de considerações e reflexões existenciais,
independente do desenho do projeto. Conheço
poucos cemitérios, mas os que eu já tive oportunidade de visitar me pareceram
sempre tumultuados; as lápides são colocadas muito próximas umas das outras; a
paisagem é bloqueada por um amontoado de esculturas; a circulação é feita por corredores
finos, escuros e tortuosos. Esse retrato soturno é o oposto do que encontramos no
“Skogskyrkogarden”, também conhecido como “The Woodland Cemetery”. O lugar é,
acima de tudo, um parque. A apenas 20 minutos de trem do centro de Estocolmo,
este local é um convite ao silencio e à contemplação.
Resultado de uma parceria entre os arquitetos Gunnar
Asplund e Sigurd Lewerentz, o projeto levou o primeiro prêmio em um concurso
realizado em 1915. O cemitério foi
construído aos poucos, sendo finalizado apenas na década de 40 e, em 1994, tornou-se
parte dos patrimônios da Unesco.
Ao chegar ao local, deparamos-nos com um grande vazio em
meio à cidade construída – o acesso é realizado através de um gramado em
declive, livre de árvores e construções.
Tudo que avistamos a princípio é um caminho de pedras que segue a rampa
linearmente, com uma largura adequada para a subida de um pequeno grupo de
aproximadamente 4 pessoas lado a lado, e uma grande cruz, um ponto de fuga na linha
do horizonte. Estes dois elementos (o
caminho e a cruz) humanizam a paisagem, trazendo as proporções do corpo do ser humano
para o cenário.
Crematório |
A cruz no fim da ladeira pontua a paisagem. Ela nos
direciona e, assim que a alcançamos, as primeiras construções se fazem
presente. Estes são o crematório e as suas 3 capelas. Estes edifícios são articulados por um
vestíbulo, uma enorme cobertura que oferece abrigo contra as intempéries,
embora não proteja completamente do frio por conta de suas aberturas
laterais. Este não encerramento permite
um contato constante com a natureza. A escala monumental do vestíbulo nos
apequena e nos eleva ao mesmo tempo, um sentimento enfatizado pela abertura
zenital no meio da cobertura. Neste ponto, foi colocada uma escultura de três
pessoas buscando uma ascensão – um gesto simples e dramático ao mesmo tempo.
Mesmo sob cobertura, a natureza se faz sempre presente. |
Abertura no muro serve de acesso aos espaços de cerimônia. Imagem captura detalhe do desenho do piso demarcando transição entre os espaços. |
Espaços para a cerimônia. Encerrados nas laterais porém descobertos. |
Do vestíbulo avistamos um pequeno lago, um morro e, em
seu cume, um recinto fortemente arborizado.
Novamente um elemento que pontua a paisagem, atraindo o nosso olhar e chamando a nossa
atenção. Seguimos dessa vez pelo gramado.
Ao chegar lá, o silêncio dos nossos passos sobre a grama é substituído pelo
barulho dos pedriscos. Nesse momento, damo-nos conta do nosso peso, do
movimento do nosso corpo no espaço, da nossa existência. Esse é um dos únicos pontos no cemitério em
que conseguimos avistar a cidade ao longe. Lembramos, portanto, que fazemos
parte de algo maior. Aqui foi também o
primeiro lugar em que pude ver as lápides. O silêncio nos convida para uma
interiorização.
Nota-se que os arquitetos não utilizam apenas elementos arquitetônicos, mas artifícios de paisagismo também. |
Ao adentrarmos cada vez mais no cemitério, verificamos
diferentes tipologias de capelas, cada uma permitindo a realização de cerimônias
específicas. A organização dos setores com as lápides também varia. Em alguns
casos, as lápides são verticais e se perdem entre as árvores gigantescas. Já em
setores de paisagismo menos denso, as lápides são deitadas no chão como se
pertencessem ao solo. Independente dessas variações, os túmulos são sempre bem
discretos, com poucas demarcações, o que faz com que o conjunto todo se integre
bem - os elementos fazem parte de um todo. A morte aqui não é retratada como
algo sombrio a ser temido, mas manifesta-se como um processo natural, como o
fim de mais um ciclo de vida. E para cada fim, há a esperança de um recomeço.
O ‘Skogskyrkogarden’ permite uma pluralidade de
sensações. As intervenções pontuais trazem significado a um lugar aparentemente
intocado; uma planície sem fim é interrompida por uma aglomeração de árvores; descampados
são descontinuados perante fileiras de árvores dispostas linearmente; o céu,
predominante no cenário, eventualmente some por completo por trás das folhas da
mata densa. São transições sutis que por
vezes passam despercebidas.
Ao criar essa multiplicidade de ambiências e
experiências, os arquitetos humanizam a paisagem natural. Tal atitude projetual
reflete os conceitos do filósofo Martin Heidegger, que utilizava a ponte como exemplo
de um símbolo que revela a paisagem. Encerro esse texto com um extrato de seu ensaio "Construir, Habitar, Pensar" :
"A ponte se
estende lépida e forte sobre o rio. Ela não junta as margens que já existem, as
margens é que surgem como margens somente porque a ponte cruza o rio(...) Com
as margens, a ponte leva ao rio as duas extensões de paisagem que se encontram
atrás delas. Põe o rio, as margens e a terra numa vizinhança recíproca. A ponte
junta a terra, como paisagem, em torno do rio." (Heidegger)
Nenhum comentário:
Postar um comentário