Um dos mais valiosos aprendizados que eu tirei do meu período de estudo em Lisboa foi a importância do percurso na arquitetura. Aprendi a projetar considerando cada ângulo, cada perspectiva, cada ponto de vista no espaço. Este recurso é
desenvolvido com maestria no projeto de Álvaro Siza Vieira para a Fundação Iberê
Camargo, em Porto Alegre.
Inaugurada em 2008, a Fundação foi a primeira obra do
arquiteto português para a América do Sul. A oportunidade de conhecer o projeto
surgiu no ano passado, quando eu estava de passagem pela cidade. Tiramos uma
tarde para ir ao museu e fiz questão de percorrer cada canto minuciosamente, sem
deixar qualquer detalhe passar despercebido.
A Fundação fica de frente para o Rio Guaíba, no bairro de Cristal,
cerca de 8 km do centro da cidade. Não há construções em volta - o terreno é conformado
por uma encosta ao fundo e a Avenida Padre Cacique a sua frente. Esta avenida é
praticamente uma via expressa então, para quem vem de carro ou taxi, o
desembarque deve ser feito no subsolo. Este movimento de descida gera,
portanto, dois momentos distintos de visualização da obra. Num primeiro momento
de aproximação, avistamos o museu na velocidade do carro - um elemento
solitário e icônico na paisagem, com uma materialidade branca que brilha
intensamente sob a luz do sol.
O segundo momento é durante a ascensão, subindo a escada do
estacionamento para a calçada. A cada
degrau, a obra emerge um pouco mais. Vemos
o objeto por baixo, de um ponto de vista que jamais teríamos se não fossemos
obrigados a fazer esse pequeno desvio. A
passagem pelo estacionamento oferece um pequeno intervalo. O visitante desce para voltar a subir.
Há prédios que se parecem com outros. A forma incomum deste
edifício faz com que seja difícil de associá-lo a outro objeto. Sua morfologia não faz alusão a algo alheio a
ela - ela é simplesmente o resultado da disposição dos seus próprios espaços,
um ‘negativo’ dos seus percursos internos. Os braços que se desprendem da
fachada são as rampas que ligam um pavimento ao outro. Ou seja, a própria
espacialidade do museu é determinante para a sua morfologia.
Estes braços avançam sobre a entrada principal, criando uma
segunda fachada por trás. Neste movimento, estes elementos suspensos geram
um vazio que se assemelha a uma rotunda descoberta. Com isso, verificamos a
presença de uma espécie de vestíbulo que abraça o visitante. Este espaço
propicia o ato de parar e olhar para cima, um momento de reflexão antes de entrar em contato com a arte. Assim como o objeto se fecha em si mesmo, nós
também somos convidados a um movimento de contemplação e interiorização antes
de adentrar o museu.
Segunda fachada. Morfologia é um negativo dos percursos internos |
Apesar da imensa esquadria de vidro na entrada, o hall de
entrada é relativamente escuro. Isso se
dá por conta do pé direito baixo. Mais
uma vez, Siza trabalha as transições através da diferença no pé direito para
criar diferentes ambientes. Do vazio
encerrado do lado de fora, entramos em um espaço baixo para então nos
surpreendermos com o magnífico pé direito da sala geral de exposição – um vão
que atravessa todos os pavimentos do museu e permite a visualização de todas as
salas de uma só vez.
Vão que atravessa os pavimentos expositivos |
Entre uma sala e outra não há corredores. Você atravessa por dentro de uma sala para chegar à seguinte e a ausência de paredes permite que você veja o que te espera a seguir. O único momento de encerramento é na subida de um pavimento para o outro. Ao contrário do que costumamos ver em outros exemplos de circulação vertical, as rampas aqui não seguem paralelas entre si – cada uma tem o seu próprio percurso, o que gera as emblemáticas e inusitadas formas da fachada. O contraste entre a amplitude das salas e o confinamento destas circulações tornam estes locais interessantes para uma exposição mais intimista. Dependendo da curadoria, as rampas podem se tornar um espaço expositivo alternativo.
De uma sala, é possível visualizar as obras da sala seguinte |
Dentro do vão, circulações semi abertas. Espaços de circulação sinuosos contrastam com o desenho ortogonal dos ambientes expositivos |
Recuos nas rampas permitem espaços de exposição mais intimistas |
Um olhar sobre si mesmo - Abertura na rampa permite visualização da fachada interna do próprio edifício |
Como sempre, as obras de Siza são pontuadas por
detalhes. Aqui não é exceção. As rampas herméticas e ensimesmadas oferecem
momentos de abertura através de claraboias ou janelas de formas curvas e
orgânicas. Tais aberturas atribuem um
tom lúdico a visitação. Em meio à
seriedade da exposição, um momento para olhar para fora e ver o céu, a luz do
sol, o rio. Um escape ao peso que a
própria arte de Iberê Camargo é característica por carregar.
Esta foi para mim uma visita inesquecível. Não foi a primeira obra de Siza que visitei
mas esta é sempre uma experiência muito sensível. Ao contrário de grande parte da produção contemporânea, sempre muito preocupada com a imagem, a arquitetura de Siza deve ser apreciada de modo multissensorial, através de múltiplos sentidos; a
audição, o tato, a visão... Cada encontro de materiais, cada detalhe de desenho
é extremamente rico e bem pensado. Para
mim, a arquitetura do Siza é poesia construída.
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